O interesse do conhecimento da anatomia para a formação do artista plástico
O ENSINO DA ANATOMIA NAS ARTES PLÁSTICAS
1.INTRODUÇÃO
É sempre interessante a discussão do interesse do ensino da Anatomia Artística na formação dos artistas plásticos. O processo de Bolonha exigindo uma gestão cuidada dos tempos lectivos, pois actualmente não possível desperdiçar horas com conteúdos supérfluos, provocou mudanças no Ensino Superior e obrigando à reflexão dos conteúdos programáticos clássicos. A Anatomia Artística foi vitimada nestes acertos constituindo a sua exclusão dos conteúdos programáticos de algumas das escolas de arte uma amputação na formação dos artistas plásticos. Discordamos daqueles que procuram restringir o ensino desta disciplina para acautelar o ensino de outras generalidades que consideram de maior interesse curricular. Segundo eles tal disciplina devia integrar a formação básica apenas das licenciaturas mais tradicionais, tais como a Pintura e a Escultura, deixando de lado outras como por exemplo a Arquitectura ou o Design. Nesta perspectiva restritiva, só se justificaria o ensino da anatomia na fase de pós graduação, nos mestrados ou como cadeira opcional em algumas licenciaturas das escolas universitárias de artes.
Discordamos frontalmente de tal posição. De facto, assim como é impensável existir um médico que não tenha tido aulas de anatomia teórica e frequentado uma sala de autópsias (mesmo que mais tarde venha a dedicar-se às análises clínicas ou a outra qualquer especialidade laboratorial), também nos parece inconcebível que se licencie alguém numa escola de artes sem conhecimentos teóricos básicos de anatomia.
Nas escolas modernas de arte continua a ensinar-se a anatomia porque esta constitui uma mais valia dando um indiscutível prestígio académico a tais escolas e dignidade aos seus conteúdos programáticos. Ela permite ainda desenvolver competências essenciais para os alunos das novas licenciaturas na área do Design e da Arquitectura, para os quais é reconhecida a necessidade de conhecimentos na área da Antropometria. Esta disciplina permite aos professores de anatomia das escolas de arte ensinar a morfologia do corpo humano, em bases comparativas. Tais conhecimentos são essenciais para o projecto que terá sempre de ser feito à dimensão do homem e exige a adequação às proporções dos diversos segmentos corporais dos utilizadores dos espaços a planear. O conhecimento anatómico permite a designers e arquitectos conhecer a mobilidade das articulações humanas, os arcos de movimento possíveis das diversas articulações, as variações anatómicas adulto-criança e homem-mulher e os condicionamentos/restrições funcionais causadas por diversas deficiências. E isso só se aprende na anatomia ou a partir do estudo anatómico do homem. Assim, a anatomia constitui hoje uma ferramenta básica e essencial para um projecto de qualidade, permitindo a adequação da dimensão anatómica do homem aos diversos espaços planeados.
2. BREVE RESENHA HISTÓRICA DO ESTUDO DA ANATOMIA ARTÍSTICA NO DECORRER DOS TEMPOS
A anatomia humana foi objecto de estudo de artistas em diferentes períodos da História. Não só porque ela era considerada uma ferramenta essencial para o desenho, a pintura e a escultura, mas também por razões históricas e culturais. O que tradicionalmente unia a arte à anatomia era um certo ideal artístico que tinha no corpo humano o centro indiscutível da expressão plástica e o ideal máximo de beleza.
Pensamos que a anatomia artística, no seu sentido clássico, pressupunha, para além de uma procura de correcção plástica, uma aposta estética baseada no conceito clássico de beleza. A representação do nu constituía, nas correntes mais clássicas e ancestrais, um meio de afirmar a fé na perfeição última da natureza consubstanciada na beleza da forma humana.
São exemplos desta convicção antiga na beleza da figura humana os trabalhos dos artistas gregos que, levados pelo seu desejo de elegância, cuidavam na sua produção artística de uma proporcionalidade correcta (utilizando normalmente o cânone de oito cabeças) e evidenciavam um perfeito domínio do pormenor anatómico e da expressão do movimento. Com as suas estátuas, os escultores gregos procuravam a perfeição anatómica (proporção e pormenor) imprimindo-lhe, também, fácies expressivos, atitudes equilibradas e movimentos graciosos.
A proeminência artística do nu como centro de criação plástica e, consequentemente, a importância do conhecimento da anatomia humana, teve o seu apogeu máximo, no mundo moderno, durante o Renascimento. Esse protagonismo manteve-se fortemente durante o Barroco, o Neoclassicismo e o Romantismo.
A mudança no “ensino académico” da arte, que teve início com o impressionismo e se acentuou com o aparecimento das vanguardas históricas, veio retirar à anatomia o lugar privilegiado que ocupava desde o Renascimento, no seio da pedagogia artística. Os movimentos vanguardistas do século XX radicalizaram ainda mais este movimento de rebelião anti-académica, questionando não só os temas artísticos tradicionais como também a própria natureza da representação pictórica.
A pintura cubista inaugurou um caminho de abstracção progressiva que conduziu muitos pintores a uma arte não figurativa em que as formas e as cores não representam coisas ou figuras reais. É lógico que a anatomia artística entendida de forma mais académica e clássica não podia ter qualquer interesse para estes pintores. Daí que, segundo alguns teóricos, a arte dos nossos dias deixou pouco espaço para o ensino da anatomia.
3.VANTAGENS DO ESTUDO DA ANATOMIA ARTÍSTICA
No entanto, a anatomia continua a ser uma disciplina essencial e de indiscutível utilidade na formação de qualquer artista. É evidente que a figura humana já não é o centro temático da criação artística actual. Mas muitos artistas das correntes vanguardistas continuam a trabalhar a partir do nu e levaram este tema para campos distintos dos tradicionais. O tema da figura humana continua a mobilizar as energias criativas da arte moderna. Todavia surgem novas abordagens que, libertas de algum academismo restritivo, constituem ferramentas para inovar, inventar novas representações e realizar obras mais arrojadas e pessoais fora das limitações das escolas da anatomia artística tradicional.
Nalgumas obras de arte moderna o conhecimento perfeito da anatomia esconde-se atrás de exageros intencionais, distorções voluntárias e disfunções só aparentemente arbitrárias, evidenciados na representação da figura humana (fig.1). Tais representações traduzem-se cada vez mais por contrastes cromáticos representativos de formas anatómicas e por novidades compositivas em que se transfiguram e realçam os velhos e clássicos conhecimentos anatómicos.
O desenvolvimento do projecto e o aparecimento de novas licenciaturas diferentes das clássicas artes plásticas veio dar novo incremento ao ensino de anatomia nas escolas de arte.
4. CONCEITOS GERAIS SOBRE ANATOMIA ARTÍSTICA
Para a figuração do corpo humano no desenho, no esboço preliminar de uma escultura, na estrutura-base de uma pintura, são necessárias noções anatómicas básicas. É importante o conhecimento científico para que o artista seja capaz de utilizar, de maneira pessoal, a forma e o movimento como processos de transmitir a sua interpretação individual das posturas e atitudes, de forma a expressar os seus sentimentos e pensamentos.
Falando em termos gerais, a anatomia com interesse artístico pode dividir-se em quatro partes:
anatomia óssea
anatomia muscular
dinâmica do movimento
antropometria.
A anatomia óssea (osteologia) é a parte da anatomia artística que se refere ao conhecimento dos ossos. O seu objectivo é o estudo da constituição dos diversos segmentos esqueléticos, dos pontos ósseos de referência mais importantes, do estudo das inserções esqueléticas dos músculos (amarras dos músculos), dos volumes relativos do esqueleto, etc. De uma forma genérica podemos dizer que o a osteologia com interesse artístico deverá ter como objectivo o estudo da estrutura sobre que se organizam as formas.
A anatomia muscular (miologia) é a parte da anatomia artística que se refere ao estudo dos músculos. Eles são o vector de qualquer movimento e relacionam os diversos segmentos do esqueleto. É importante o conhecimento das depressões e das saliências mais significativas que as massas musculares determinam no tronco, no abdomen e nos membros. De grande interesse para o artista, a anatomia muscular determina, de forma muito importante, a forma externa do corpo humano.
A dinâmica do movimento tem como objectivo o estudo do esqueleto, apoio de alavancas organizadas para a função, e das massas musculares, vectores do movimento, e das articulações como sede da cinética articular. Tal dinâmica é diferente consoante a articulação envolvida e o segmento articular que se encontra em movimento. Só o conhecimento científico da artrologia e da fisiologia articular poderá permitir ao artista conhecer as posições de equilíbrio, os jogos de agonistas-antagonistas, as posturas e as diversas atitudes corporais.
A antropometria é a disciplina que estuda a morfologia do corpo humano em bases comparativas. Dá a conhecer a dimensão dos diversos segmentos corporais e as suas variações anatómicas adulto-criança e homem-mulher. Tais conhecimentos constituem uma ferramenta básica e essencial para um projecto de qualidade, permitindo a adequação da dimensão anatómica do homem aos diversos espaços projectados.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do que ficou exposto defendemos o ensino da anatomia nas escolas de arte na medida em que os conhecimentos básicos de anátomo-fisiologia são necessários na formação artística. A anatomia permite "ver" melhor a figura humana, estabelecendo uma maior "intimidade" com as formas corporais e o movimento, possibilitando ao artista a compreensão completa das diversas posturas, atitudes e movimentos do corpo humano.
Se a interpretação artística da forma é, segundo alguns autores, uma questão pessoal entre o artista e a página em branco, o conhecimento anatómico é uma arma preciosa quando se quer dar ênfase a certos pormenores. A própria realidade pode ser modificada sempre que se quer dar força ou subtileza a um desenho, ao esboço preliminar de uma escultura ou à estrutura-base de uma pintura, representativos do corpo humano.
No ensino de anatomia artística duma Escola Universitária de Artes temos verificado, na prática, que nas mãos do artista nosso tempo, o conhecimento da anatomia humana (fig.2) pode ser uma ferramenta expressiva ao serviço da criatividade e da sensibilidade pessoal e constitui, cada vez mais, a base imprescindível para o projecto que se quer com qualidade e adequado à dimensão humana do homem.
MAMEDE ALBUQUERQUE
EX-PROFESSOR ASSOCIADO DA EUAC
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Anatomia do tronco - Licão 2 - 2º Semestre 2008 - Desenho II - EUAC
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